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Dirce Martins Morra

Dirce foi professora no Ginásio Vocacional de Vila Santa Maria em São Caetano do Sul - SP. Imagem do Depoente
Nome:Dirce Martins Morra
Nascimento:03/12/1946
Gênero:Feminino
Profissão:Professora
Nacionalidade:Brasil
Naturalidade:São Paulo

Transcrição do depoimento de Dirce Martins Morra em 29/03/2016
Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) 
Núcleo de Pesquisas Memórias do ABC e Laboratório de Hipermídias 
Depoimento: Dirce Martins Morra
São Caetano do Sul, 29 de março de 2016.
Equipe técnica: João Paulo Soares
Pesquisadora: Maria Aparecida de Carvalho.
Transcritora: Helena da Silva Rocha

Pergunta: 
É um prazer muito grande recebermos a Professora Dirce. Então, eu gostaria que você se apresentasse e contasse primeiro como chegou ao Vocacional. Fique à vontade.

Resposta:
Pois não. Fui professora por 2 anos no Ginásio Vocacional de Batatais e dois anos no Ginásio Vocacional aqui de São Caetano. Acho que essa história começou há 50 anos atrás. Em 1966 eu estudava no Instituto Pedagógico do Ensino Industrial e lá um professor fez referências ao Vocacional e ao curso de treinamento. "Olha, seria interessante que vocês fizessem. É muito bom para conhecer o novo método de ensino e tal". E nós fomos. Eu e mais algumas colegas. Mas, naquele ano era o nosso penúltimo ano de escola. Então nós fomos aconselhadas pela pessoa que nos recebeu que aguardássemos o término do curso, que fizéssemos no ano seguinte o treinamento porque nós tínhamos a chance de sermos contratadas. Nós achamos, não é? Imagina. Novinhas, 20 anos, nessa faixa de idade. Nossa! Contratadas no Vocacional. É muita coisa. Mas enfim, voltamos no ano seguinte. Foi o sétimo curso de treinamento para professores. Coincidentemente esse foi o ano que selecionou os professores também para São Caetano, que estava começando naquela ocasião. E, do que constava esse curso? Acho que foram 4 meses, disso eu não tenho muita certeza. Mas, eram aulas ministradas pelos próprios técnicos do SEV, Serviço do Ensino Vocacional, professores da universidade de São Paulo e nós tínhamos também estágio em diferentes salas de aula, na nossa área específica. Tínhamos grupos de estudo com os técnicos do SEV, visitas a alguma unidade do Vocacional do interior, enfim. E, uma bibliografia imensa para ser lida. Com apresentação de relatórios a cada final de mês. Foi um curso muito puxado. Lembro que foi a época que eu mais estudei. Mas, o final do curso era uma situação simulada. Então, foram formados vários grupos com um professor de cada área e dado um tema de unidade didática para que nós fizéssemos o planejamento com uma simulação de reunião pedagógica no Vocacional e felizmente eu fui selecionada e comecei a minha carreira como professora. No Vocacional eu aprendi muito. Eu acho que valeu como um curso de especialização, de mestrado. Sei lá do que. Foi uma experiência maravilhosa. Foi uma pena que ela foi interrompida da maneira como foi. Foi realmente uma pena. 
Pergunta:
Você quer falar mais alguma coisa da época do treinamento?

Resposta:
Pois não. Vocês gostariam dos detalhes também?
Pergunta:
Principalmente, o que me chama muita atenção é essa sua disciplina, Economia Doméstica, que a gente, a princípio, olha assim. Então, eu gostaria que você me explicasse como que você desenvolvia essa disciplina.
Resposta:
Eu vou falar um pouquinho do treinamento.

Pergunta: 
O que você utilizava, com que autor você trabalhava. Esse maravilhoso, que é o Josué de Castro, que você comentou.

Resposta: 
Sim. Alguma coisa sim. Voltando ao treinamento, uma coisa que fica muito clara ou ficou muito clara para nós naquela época era a diferença do ginásio comum, [5'] do ginásio estadual comum para o ginásio Vocacional, desde a contratação de um professor, que passava por todo esse processo, mas tudo mais. Às vezes fica difícil falar no Vocacional porque os conceitos, as palavras que se usam não dizem a mesma coisa mais. Então, hoje quando nós falamos em grupo, o conceito que se tem de trabalho em grupo é uma coisa meio desgastada já, dá a impressão daquela história de um faz, todo mudo assina, é a hora de bater papo e no Vocacional não era assim, tudo era muito sério, tudo era muito pensado. Objetivo também. Um objetivo que se colocava em papel, ele ia em função de uma realidade do aluno, de algo que deveria ser desenvolvido naquela faixa de idade e depois nós ficávamos muito tempo pensando de que maneira nós iríamos trabalhar para conseguir atingir aquele objetivo. Então, não era um enfeite no planejamento. Outras questões, a postura, isso já ficava claro no treinamento, a postura do professor. Quem é o professor no Vocacional? É aquele que vai estimular, orientar o aluno e selecionar os conteúdos da realidade que serão apresentados para o aluno. Já muda a história. E o aluno? O aluno não é aquele sujeito que fica sentadinho ouvindo. O aluno é o agente da sua educação. E aí vem toda a questão do estudo. No Vocacional tudo começava de um simples para um complexo, do próximo para o distante, do particular para o geral. Então, na questão do estudo, na 5ª série começava-se com estudo dirigido, que depois ia para um estudo supervisionado, estudo livre, estudo do meio, ação comunitária, projeto, que era uma atividade já da 8ª série. Acho que só da 8ª, se não me falha a memória. Enfim, o estudo era algo que ia crescendo, cada vez exigindo uma independência maior do aluno. No começo esse estudo. Vamos supor que partíssemos de um texto pequeno, uso do dicionário, em todas as aulas, não é só em Português, o professor de Português vai ensinar como usar, mas todos os outros vão usar. Então, grifar a palavra desconhecida, fazer interpretação, enfim, com o professor junto. Depois discute-se o texto com a classe, o que entendeu e bababá. Aí poderia entrar uma situação de trabalho em grupo. O grupo também. Outra coisa que começava com um pequeno grupo no 5ª série, depois de um tempo de convivência nós aplicávamos o sociograma, o aluno escolhia com quem queria trabalhar e a classe era dividida nesses grupos formados com a técnica sociométrica. Era uma primeira experiência de trabalho em grupo que a criança ia ter. Então, com responsabilidades frente ao grupo, a participação, enfim. E isso ia se alargando, participação em assembleia, participação na cantina, na cooperativa, que era atividades da área de práticas comerciais, participação no escritório contábil, no banco, no governo estudantil e isso tudo culminando na 8ª série com um projeto de ação comunitária. Então veja, do grupo pequenininho, aonde ele vai aprendendo a trocar ideias, a se responsabilizar por algo até a inserção em um grupo maior, que era a comunidade. Sempre assim no Vocacional. Ainda no treinamento essas coisas ficavam já explicadas claramente, o processo de avaliação, que era um processo contínuo, tudo que o aluno fazia em todos os momentos era avaliado e havia uma fichinha, nós registrávamos essa avaliação em dois documentos, a ficha de observação [10'] do aluno, que era um selinho onde se descrevia o comportamento do aluno durante o bimestre e uma ficha de escolaridade, aí sim com notas em todas as atividades. A ficha de observação ia para o orientador educacional, que formava um mapa com todas as fichas de todas as matérias, isso bimestral e fazia uma síntese do interesse do aluno, dos pontos fortes, dos pontos fracos e isso depois era trabalhado tanto com os professores, no que era necessário mudar, se fosse um quadro geral da classe, ia aparecer no objetivo do bimestre seguinte ou ia servir como material para orientação vocacional do próprio aluno. Enfim, todas as atividades, não se preenchia um papel no vocacional que não tivesse um sentido, um significado, uma razão de ser. Era muito trabalhoso, mas não era à-toa. Não se fazia uma fichinha por fazer. Ela tinha sentido. E os alunos passavam também por sessão de grupo, era um tipo de uma terapia em grupo com orientador educacional que era um psicólogo. E as fichinhas de escolaridade com as notas iam para um orientador pedagógico. O Vocacional tinha duas equipes, uma de 5ª e 6ª, uma de 7ª e 8ª, de professores, cada equipe tinha o seu orientador educacional, o seu orientador pedagógico. A escola era dirigida pela equipe técnica, então, o diretor, os orientadores e ainda havia um pedagogo responsável pelo acompanhamento pós-escolar. Então, ao sair da 8ª série o que acontece com o aluno? Como ele se insere na comunidade? Ele vai ter dificuldade em questão e conteúdo, ele se adapta bem em questão de atitudes, ele tem métodos de estudos diferenciados, ele realmente assimilou ou não? Enfim, havia tudo isso. Era muita coisa. (risos)
Você perguntou de Economia Doméstica. Além das disciplinas comuns, porque aqui em São Caetano os alunos ficavam meio período na escola. Mas, isso até para responder já algumas críticas do governo que dizia que o Vocacional era uma escola para a elite porque era uma escola de período integral. Então houve uma tentativa de se fazer se adequar a escola a um período menor.

Pergunta: 
Eu gostaria de pedir o seguinte, que você comparasse assim, me dissesse o que é diferente nessa escola de meio período e o que continuou. Você trabalhou dois anos em Batatais e dois anos aqui. Então, como que foi o seu trabalho, como que era lá no período integral e aqui o que você conseguiu fazer, o que mudou?

Resposta: 
Essa resposta vai ficar um pouquinho prejudicada porque quando eu vim para cá o Vocacional já não era o mesmo. Então, em dezembro de 69 o DOPS invadiu algumas escolas, todos os diretores foram afastados, a Maria Nilde foi acusada de subversão, enfim. Então quando eu vim para São Caetano eu já encontrei uma direção na qual não se podia confiar. Você não sabia se você estava sendo questionado, se havia uma suspeita de que você era um comunista ou alguma coisa do gênero. Então, era muito difícil o trabalho aqui em São Caetano quando eu vim para cá. Mas, o que mudou? Em termos de carga horária, algumas atividades também foram reduzidas, por exemplo, práticas comerciais não tinham tanto tempo mais para desenvolver a cantina porque a cantina era dirigida por alunos, por grupos, sempre por grupos que iam preparar tudo para servir, mas a parte administrativa também, como comprar, quanto comprar, eles eram orientados com tudo em relação a isso, orientar a fila, jogar os resíduos no lixo, enfim. Todas essas atividades, essas instituições [15'] tinham atividades reduzidas em São Caetano, então não era mais a mesma coisa. Tinha a cooperativa também que reduziu bem.

Pergunta:
É porque não era só a quantidade de horas, era a metodologia.

Resposta: 
A metodologia. E o projeto, por exemplo, que ocupava, no Vocacional em Batatais, o horário do projeto era uma vez por semana, se não me engano, uma tarde. O que era o projeto? Era uma atividade proposta por grupos de alunos que envolvia várias disciplinas como a construção de um aparelho científico, uma experiência, alguma coisa do gênero que eles tinham que fazer o projeto no papel, isso em grupo e executar com orientação de professores de várias matérias. Então, naquele horário específico não era um horário de aula, era um horário da atividade projeto. O aluno tinha horário para estudo livre dentro da escola, então ele se dirigia à biblioteca e ia estudar. Isso no período integral.

Pergunta: 
Isso lá em Batatais?

Resposta: 
Lá em Batatais, nas outras unidades. Aqui em São Caetano isso já não existia mais, então houve uma adequação.

Pergunta: 
Sim. Mas, na conversa com os seus colegas que estavam em São Caetano no primeiro período, eles conseguiam antes da intervenção?

Resposta: 
É que os professores daqui, a maior parte, não trabalhou em outras unidades. Então eles começaram no Vocacional, neste Vocacional de São Caetano. Eu acredito que foi possível funcionar. É lógico que o Vocacional era o modelo ideal. Então ele tinha tudo que você imaginasse como ideal, a visão utópica da educação. O que seria o ideal? Então era o Vocacional em período integral. Ele tinha tudo. O Vocacional de São Caetano era o que possível ter, não que ele tenha ficado prejudicado porque no Vocacional a aquisição de conteúdo não era importante. A formação de conceito sim, mas a aquisição de conteúdo não. Então dizer - "ah, diminuiu e não vai dar para dar todo o conteúdo". Não existia essa preocupação no Vocacional. Compreende? Uma coisa que é importante também... É tanta coisa que, às vezes, eu não sei se eu me perco. Mas, uma coisa que é importante é a organização do próprio conteúdo, como eu disse do próximo para o distante. Então começava a escola, o bairro, a comunidade, a cidade de Batatais ou a cidade de São Caetano, o Estado de São Paulo, o Brasil, a região antes do Brasil, a região, Brasil, América Latina e ia expandindo. E sempre nessa coisa do aqui, lá fora. Então, o que é parecido, o que é semelhante, será que se isso ocorre aqui ocorre lá fora também? Então, o conteúdo era organizado dessa forma. Mas, como? Através de unidades pedagógicas. Então, em uma aula-plataforma lançava-se uma unidade e cada professor na sua área específica ia procurar desenvolver aquilo. Então, aprofundar conceitos, introduzir conceitos e o conteúdo era muito tirado da realidade, por isso exigia do professor um estudo constante dos fatos, da Economia, de tudo.

Pergunta:
E a Economia Doméstica, você trabalhava o quê?

Resposta: 
A Economia Doméstica se inseria direitinho nesse contexto, muito bem e de uma maneira tranquila. Eu vou citar uma unidade pedagógica e como foi a integração de Economia Doméstica. Essa unidade é de Batatais. De São Caetano eu me lembro de uma ocorrência que eu achei muito engraçada, mas não me lembro da unidade inteira. A unidade que eu me refiro de Batatais era "como vive o homem do meio rural paulista". Então, como surge uma unidade? Fecha-se o bimestre anterior com uma síntese [20'] feita pelos alunos. Havia uma pergunta e eles vão responder a essa pergunta. Fechou o bimestre. Com isso tudo, absolutamente tudo é avaliado, alunos, professores e tudo mais, porque se o seu conteúdo não estiver inserido naquela resposta algo saiu errado. É meio complexo. Nessa unidade específica apareceu a questão, na aula-plataforma, "como vive o homem do meio rural paulista?" Os alunos vão embora, é um fim de período, no dia seguinte reunião pedagógica. Aí o professor de Estudos Sociais, os dois, História e Geografia, vão dar uma pincelada do que seria interessante ver em termos de Estudos Sociais e isso engloba tudo, História, Geografia, Sociologia, o que estiver envolvido naquilo. O que eles pretendiam passar dentro disso, o que seria interessante? Aí cada área vai buscar o que compete a ela. No caso de Economia Doméstica, as questões de família, moradia, higiene, alimentação, eram as questões que seriam vistas em Economia Doméstica. Além disso, que seria uma visão do conteúdo, que conceitos nós vamos trabalhar dentro da questão comunidade, interdependência, blábláblá? E mais alguns referente à atitude, então aí entra o orientador educacional e diz - essa classe e assim, assim, é atenta ou é muito dispersa ou é rarará. E dessa síntese que ele faz eram tirados também objetivos comportamentais, tipo desenvolver raciocínio, responsabilidade, senso crítico, enfim. Após a reunião pedagógica cada um se posicionar, cada área mais ou menos já dizer como iria se integrar. Cada um ia para a casa, resolvia o seu planejamento, no dia seguinte repassava-se tudo, - então vai ser assim, eu vou trabalhar isso, vou introduzir tal conceito, papapá. Tudo bem e beleza. Então Economia Doméstica, nesse bimestre específico eu trabalhei junto com os demais. Nós fizemos várias entrevistas, então o que interessava para mim era uma entrevista em uma família com pessoas de uma família na zona rural. Então foram até a zona rural, entraram na casa, observaram, conversaram com a senhora, com as crianças, enfim. Depois eles foram ao centro de saúde, Unidade Rural Piloto. Entrevistaram também um fazendeiro. Enfim, eles foram colhendo dados. Todas essas entrevistas e estudos, tudo isso era elaborado em sala de aula, o que vai ser perguntado, por que, com que objetivo e tal. Muito bem. Na volta o que se pedia era que eles elaborassem um relatório, primeiro só com dados e depois levantassem as conclusões. Isso 6ª série. Então eles ouviram, por exemplo, coisa do tipo... O homem do... Eles têm terra para plantar, mas eles são vadios, eles não querem saber de nada.

Pergunta:
Você está falando de quem?
Resposta: Do fazendeiro. Eles são vadios. Qual é a palavra? Indolentes. Esse pessoal é indolente, eles não querem nada com nada, tem terra lá para plantar e ninguém planta. Pode ir lá ver. Só tem mato. Era um dado de informação e outros referentes à economia, banco, empréstimo e essas coisas todas que eles colhiam nas outras áreas, mas não era do meu interesse, o meu era específico. Aí lá na unidade rural piloto, o médico dizia o seguinte: "90% dessa população tem verminose, 80%, não sei o que tem anemia, as crianças são desnutridas e tá, tá, tá". Tudo bem. [25'] Dado de entrevista. Enfim, cada local ia dando a sua versão do fato. Aí ele, sala de aula, verminose. O que é verminose? Verminose é uma doença causada por isso. - "Ah, mas na casa deles não tem banheiro mesmo. A gente viu. E a fossa é perto da água, não é afastada". Tá. Então condições de higiene não são boas. Está bom. "E quais são os sintomas?" Desânimo, a pessoa não tem vontade de fazer nada. "E anemia?" Ai, rarará. Conclusão. Não tinha meu dedinho na conclusão. Eles não indolentes, eles são doentes e eles não têm condições satisfatórias de vida, a moradia não corresponde às necessidades mínimas que um ser humano precisa e ia por aí afora e cada um trabalhava isso na sua área. Agora, essa é a parte de integração, normalmente corre a aula normal. Tá. Então vamos preparar um cardápio para um lanche equilibrado em valor nutritivo, vamos supor que fosse a proposta. Isso é uma outra aula, uma aula prática. Vamos convidar alguém para vir? Então vamos fazer os convites para o professor X, Y participar desse lanche, quem vai entregar. Tudo bonitinho. Aí recebe e tal. Transcorre normal a aula em outros aspectos. Aí chega o final do bimestre, que era assim uma loucura porque quem não tinha conseguido dar tudo ficava caçando aula. "Ai, vocês têm uma hora de aula para me ceder porque eu não concluí o meu conteúdo, eu preciso, não sei o que e tal". Bom, enfim. A síntese não era feita sempre da mesma forma, às vezes eram perguntas, às vezes eram situações que eram criadas para o aluno tentar resolver, uma situação prática, por exemplo. Enfim, nessa específica foram feitas perguntas para serem resolvidas em grupo. Eu me lembro que na parte de raciocínio para um grupinho de 6ª série a pergunta era: em que momentos, em que situações eles sentiram que houve muito esforço, que eles tiveram que raciocinar muito. Então o grupo respondeu - "em Economia Doméstica houve essa exigência de muito esforço, de muito raciocínio". E o professor de Matemática contestou. "Como em Economia Doméstica? Vocês não perceberam raciocínio na minha aula de Matemática?" A menina respondeu: "Professor, é que quando a gente tem mais ou menos um exercício padrão a gente vai seguir. Aquele não é tão difícil. Agora, pegar aqueles dados todos da entrevista, comparar e concluir foi bem complicado". (risos) Muito bonitinho. Então essa hora é muito gratificante. É muito bom você perceber que você ficou lá queimando a pestana para descobrir de que maneira você ia trabalhar o bendito do raciocínio ou a responsabilidade, porque é assim Maria Aparecida, se você colocasse lá - desenvolver ou propiciar condições que desenvolvam responsabilidade - isso tinha que estar explícito na aula. Não vai cair só céu. Então você tinha que criar situações que exigissem a responsabilidade para que depois você pudesse comentar se ela apareceu ou não com os alunos e avaliar isso.

Pergunta: 
Foi nesse contexto que você trabalhou com eles a Geografia da Fome?

Resposta:
Não, Geografia da Fome... Foi. Foi. Não. Não. Espera lá. Geografia da Fome foi com um grupo de 8ª série. Esse livro Geografia da Fome, ele constava da biblioteca [30'] específica da nossa sala porque é interessante dizer também que eram salas-ambiente, o aluno que mudava de sala para qualquer matéria.

Pergunta:
E tinha livros?

Resposta: 
Cada sala tinha um cantinho com a biblioteca.

Pergunta: 
E Economia Doméstica?

Resposta: 
Também tinha. Economia Doméstica era uma casa, tinha a cozinha com armários, fogão, geladeira bonitinha, uma muretinha baixa, aí vinha o que poderia ser uma sala de jantar quando se juntavam todas as mesas, separadas, davam quatro grupos para estudo. E, separado por um painel, pintado até pelo Bassano Vaccarini, a sala de visitas. Então, quando eles recebiam para lanche, para almoço, primeiro eles recebiam o convidado na sala, batiam papo e depois levavam para o lanche.

Pergunta: 
E tinham os livros nas salas?

Resposta: 
E tinha os livros em um cantinho montado com tijolos e prateleiras, muito simples.

Pergunta:
Você se lembra de outros livros, naquela época, que tinha lá?

Resposta: 
Tinha muita coisa. Muita coisa de saúde, mas eu não me recordo, em particular, porque Economia Doméstica abrangia puericultura, noções de enfermagens, alimentação, higiene, arranjos domésticos, decoração, era muito vasto.

Pergunta:
E só mais uma pergunta. Como que as pessoas, naquele tempo, reagiam com meninos fazendo trabalho de meninas, que era o papel? Como que era? Eu quero que você conta isso. Como que era trabalhar com...

Resposta: 
Na sala de aula isso era muito natural e alguns meninos até propunham algumas receitas - "Ah professora, eu posso experimentar fazer tal coisa?" Parece que os meninos eram mais criativos que as meninas na cozinha. "Professora posso experimentar uma achocolatada com laranja?" Pode. Pode experimentar. Enfim, a aceitação por parte do aluno era muito natural. Os problemas surgiam com alguns pais. E no ginásio aqui em São Caetano nunca houve problema nenhum. Agora, em Batatais nós tínhamos dois tipos de aluno, uma clientela proveniente da zona rural de Batatais, que eram pessoas muito simples e uma clientela que vinha da faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, filhos dos funcionários, dos médicos, é muito diferente dos aluninhos de Batatais, que eram da zona rural ou da cidade de Batatais mesmo. Então, alguns pais de Ribeirão tinham isso - "Como? Meu filho não vai para a cozinha". Ou então determinado aluno-problema que criava situação em todas as aulas e ia muito bem em Economia Doméstica porque também, diga-se de passagem eu tinha 21 anos, um bom humor enorme e uma maneira muito natural de lidar com eles, eu não sei como, mas tinha. Então, é muito difícil ter problema. E o pai muito zangado na reunião - "Meu filho vai bem nessa coisa de Economia Doméstica. Nisso não precisa ir bem. Eu quero que ele vá bem em Matemática, em Português, em História, Geografia". (risos) Então, havia, por parte de alguns, uma desvalorização. Mas, chegou a haver um movimento em São Paulo, não sei se era... Agora eu não tenho muita certeza dos dados assim para afirmar, mas parte daquele Movimento Família... Como se chamava? Família Propriedade, Tradição Família Propriedade. Então, uma das coisas que o pessoal reclamava era essa questão do Vocacional, é uma escola que pretende acabar com os valores familiares por que onde já se viu um homem fazer papel de mulher. Então é uma escola que quer acabar com a família. Eu ficava espantada porque o objetivo principal da minha matéria era a questão familiar. Eram os valores de família, exatamente isso. E, na verdade, o Vocacional pretendia preparar a pessoa para a vida, para ser independente, [35'] para cuidar de si e cozinhar, lavar, pregar botão. Isso faz parte. Não importa se é homem ou mulher. E hoje o mundo mostra que é isso mesmo. Mas na época, 50 anos atrás, para algumas famílias isso era problema.


Pergunta:
Eu quero que você repita o que você falou. Que tipo de escola era o Vocacional? Era uma escola para uma sociedade...

Resposta:
Ah sim. A proposta do Vocacional era ou se propunha a ser uma educação para uma sociedade em transição, para uma sociedade em mudança porque se percebia que havia uma mudança, que estava havendo uma mudança na sociedade. Então você vai educar para qual sociedade, para quais valores? Então a questão era assim - como educar para a mudança? Então você tem que desenvolver algumas coisas, por exemplo, a reflexão e a crítica, a pessoa não pode aceitar qualquer coisa como boa nessa mudança que vem, ela tem que refletir, ela tem que ver se aquilo é conveniente antes de aceitar. Então, algumas coisas se valorizam muito, como a reflexão, o senso crítico, liderança, coisas que a escola sufoca. O Vocacional o contrário. Criatividade, isso era muito valorizado. Não sei se eu estou sendo clara.

Pergunta:
Está. Está muito bom.

Resposta: 
No Vocacional era apaixonante. Exigia muito, mas era muito sério, era uma educação, você se sentia uma educadora, alguém que tem que pensar a sua tarefa, você não entrava na sala de aula sem saber o porquê você estava lá.

Pergunta:
E me conta aqueles casos de São Caetano que você falou que tinha uma coisa que tinha dado errado.

Resposta: 
Aqui em São Caetano foi um problema meu, na verdade, eu que errei. Mas, eu me lembro que na primeira reunião que houve, na caracterização de clientela, na época do planejamento, porque começava o ano assim, primeiro uma reunião no Serviço do Ensino Vocacional, lá no Osvaldo Aranha, no Brooklin, então ali eram dadas as cores, as tintas gerais, geralmente palestras com Maria Nilde, os grandes temas, Filosofia, Metodologia, questões sociais, pontes que a gente deveria pensar, estar atento, enfim. Depois cada um para a sua unidade era retomado no nível da comunidade ali e a orientadora educacional e pedagógica faziam a caracterização da clientela baseadas na síntese do ano anterior. Então, eu era nova e ela disse assim: "Olha gente, principalmente para os novos, as famílias de São Caetano, a maior parte, ou uma parte pelo menos é constituída de crianças de filhos de pais separados. Muitas famílias têm 4, 5 filhos, mas cada um é de um pai, outras crianças são criadas pelos avôs..."

Pergunta:
Em que ano foi, 68?

Resposta: 
Setenta, 1970. Eu vim para São Caetano em 1970. Trabalhei 70 e 71, no Vocacional daqui. Então dizia a coordenadora: "Vocês tenham cuidado". A primeira unidade, em seguida à escola era a família, "Vocês tenham cuidado com o conceito de família para não melindrar a criança". Como sempre depois de uma reunião você ia para a casa, ia pesquisar, ia estudar, ia ver o que você ia fazer. E eu tinha na minha casa um livro de Antropologia Cultural, O Homem, de Ralph Linton. E lá fui procurar a família. Falei - Vou ver se tem alguma coisa especial. E achei conceito universal de família. Tranquilo. Eu achei perfeito. Eu achei que cabia porque eu fui... A orientadora pedagógica me apoiou. [40] Só que eu devia ter falado antes, digamos assim. Eu vi que o que vale é a função. Então é importante que tenha alguém que faça o papel de mãe, se possível alguém que faça o papel de pai, que eduque, que corrija, enfim, que oriente, alguém que cozinhe, enfim, aquele arranjo familiar. Isso em uma 5ª série. E eu trabalhei esse conceito. E a professora de Estudos Sociais trabalhou o conceito de laços sanguíneos. Mas, a observação não tinha dito que não era para enfatizar isso porque as famílias eram desestruturadas, não é? Mas, de qualquer maneira eu devia ter falado. E, ficou uma situação um tanto constrangedora, aí a orientadora me chamou particularmente - "Da onde você tirou esse conceito?" Eu disse. Ela mandou buscar o livro na biblioteca da escola, folheou e falou: "Está correto. Não. Tudo bem. Eu vou conversar com a professora de História". (risos) Ótimo. Outra coisa engraçadinha que houve foi uma ocasião que um dos objetivos era desenvolver a organização porque eles eram muito bagunceiros. Eu não me recordo. Acho que foi lá. Acho que eu trabalhei nas duas, mas lá eu trabalhei mais porque eles tinham armário. Então eu trabalhei a organização como aspecto físico, arrumar a malinha que eles levavam, arrumar o espaço físico antes de começar um trabalho, então nada de começar a aula com aquele monte de coisas em cima da mesa. Vamos arrumar. Arrumar o armário, coisa desse tipo. Aí quando chegou na síntese uma das questões era se o aluno havia notado uma melhora. Havia uma parte individual da avaliação e uma parte para ser resolvida em grupo e um aluno respondeu assim: "Eu não melhorei muito. A solução é ter mais aula de Economia Doméstica". (risos) Não era bem o que eles esperavam como solução, mas tudo bem. Eu falei: É o meu conteúdo. O que eu vou fazer? (risos) Enquanto outros trabalhavam a organização mental eu trabalhava a organização física. Faz parte. Tem essas coisas, mas era muito bom. Muito bom. Era um desafio. Sempre um desafio.

Pergunta:
E sobre o final do Vocacional? Queria que você contasse alguma coisa, assim, o que você puder. Também não quero mexer em questões muito doloridas. Mas, assim...

Resposta: 
Que eu me lembro.

Pergunta: 
Que você se lembra.

Resposta:
Bom, o Vocacional, como eu disse, em 70 e 71, eu trabalhei aqui em São Caetano, as não era a mesma coisa. Na verdade o DOPS invadiu o Vocacional em dezembro de 69. Nós já não estávamos com alunos. Era um final de ano e nós estávamos em conselho, reunião de conselho.

Pergunta:
Lá em Batatais?

Pergunta: 
Em Batatais. E todas as escolas tinham o mesmo calendário, então isso era geral para toda rede. E eles fizeram um movimento orquestrado. Eles invadiram no mesmo horário todas as unidades, não sei se todas as unidades do Vocacional ou só as visadas, Americanas, Batatais, algumas eram mais complexas. E, as repúblicas onde nós morávamos.

Pergunta:
Os professores moravam nessas repúblicas?

Resposta: 
Isso. Porque todos nós éramos de fora. Pouca gente era da cidade de Batatais e nós morávamos em República. Então as repúblicas, a escola e as outras escolas, tudo no mesmo horário. E aí era um questionamento, aquela coisa que a gente conhece mesmo como DOPS, aquela pressão e ameaça de tortura, aquela coisa toda e as grandes questões eram, por exemplo, a avaliação, o aluno tinha auto avaliação e eles alegavam que avaliação era um processo de lavagem cerebral porque, eu me esqueci, quando mencionei avaliação, que tudo era avaliado e o aluno também se avaliava. Se ele é um agente da sua educação [45'] ele tem que se colocar, ouvir o que o grupo pensa dele. O grupo de iguais. "Ah, eu fui ótimo professora". - "Nada disso, você nem fez a coisa". E eles eram super sinceros. E eles alegaram que esse processo era um processo de lavagem cerebral. Esse era um ponto. Outro ponto é que eles procuravam as ligações com ideias subversivas. Como nós suspeitávamos que isso pudesse ocorrer, todos os livros que podiam dar margem a essa interpretação foram retirados da escola. Então, por exemplo, no meu caso Geografia da Fome, Geopolítica da Fome, que faziam parte da minha bibliotecazinha. Acho que eram só esses dois. Mas Estudos Sociais tinha muita coisa. Tiraram tudo. Naquele ano o pessoal fazia ação comunitária na zona rural, era em um lugar, em um bairro específico, eles estavam trabalhando em um projeto de alfabetização de adultos usando o método Paulo Freire.

Pergunta:
Lá em Batatais?

Resposta: 
Em Batatais. Esse era o projeto de ação comunitária da 8ª série. Então, lógico que tudo isso sumiu. Quando eles chegaram acho que todas as salas foram reviradas, na minha panela. Tudo. Eles olharam tudo, tudo, tudo, tudo. E na república também, tiraram tudo do guarda-roupa. Felizmente não tiravam as gavetas porque no fundo estava cheio de livros, por baixo. Felizmente eles não revistaram tanto. Em Batatais ninguém foi detido. Em Americana sim, alguns colegas foram presos, principalmente os professores de Estudos Sociais, que eram os mais visados. Mas ficaram pouco, não chegaram a ser torturados, nem nada disso. Nessa época a Maria Nilde estava em um congresso no Sul e estava recebendo elogios, que você tem uma cópia aí, não é? Do governo da França, pela excelência da experiência do Vocacional. E nós aqui sofrendo essa pressão. Então foi isso. E quando eles foram embora da cidade nós tínhamos a certeza que aquilo havia terminado, que dificilmente ia se conseguir continuar com a mesma experiência da mesma forma e realmente não foi, a partir daí tudo era muito vigiado.
Pergunta:
São Caetano também era vigiado?

Resposta: 
Também. São Caetano tinha um assistente de direção, talvez fosse a personalidade dele, mas ele era muito estranho, então nós vivíamos em sobressalto, principalmente os professores que vieram de outras unidades e daquelas que tinha problema, como Americana, que era um foco que eles estavam... Porque alguns pais denunciaram o Vocacional como subversivo. Batatais teve um problema. Eu vou narrar. O estudo do meio que era feito na 7ª série geralmente era feito em Minas, cidades históricas, então eles iam conhecer o Barroco, era muita coisa de Arte e tal. E naquele ano, em função até da política, os professores acharam, mas isso não vinha de cima. Vamos deixar isso bem claro. Isso foi uma decisão...
Pergunta:
Do grupo?
Resposta: 
Do grupo de professores de Batatais. Como nós tínhamos uma clientela extremamente diversificada, oposta, nós tínhamos alunos extremamente humildes provenientes da zona rural, muito humildes no trajar, em tudo e alunos de um outro nível. Então o professor de Estudos Sociais, ele propôs. Foi votado e todo mundo aceitou, mas não e votação assim - Ah, tudo bem. Não. [50'] Todo mundo argumentou - "é isso, aqui. Não, eu sou contra por isso, por aquilo". Enfim. Que se fizesse um estudo do meio em uma fazenda, mas com trabalho. Todo mundo ia trabalhar, ia ter uma experiência de um dia na agricultura. Entendeu? Agora você pode imaginar. Se ir à cozinha fazer bolo ou preparar um almoço gerou problema para alguns pais, você imagina o filhinho bonitinho voltar para a casa com calo o dedo porque pegou na enxada. O que essa escola quer? O que essa escola está pretendendo? Agora, tinha coisa que não dava para evitar, por exemplo, naquele estudo do meio que eu citei, "como vive o homem do meio rural", quando eles visitaram as instituições da comunidade, por exemplo, eles descobriram que o leite era jogado fora por causa da questão do preço, de manter preço e tal. E tinha aluno que era filho de fazendeiro e aí - "Pai como assim? Tem criança que não tem leite para tomar. Como que joga o leite fora?" Quer dizer, era uma escola que provocava entender. E aí você encontra em um governo militar...
Pergunta:
E aqui em São Caetano foi justo na época do AI-5?

Resposta:
Foi.

Pergunta: 
E você se lembra de algum contato, dos professores daqui, quando você veio, dos que estavam aqui, algum relato daquele...?

Resposta: 
O pessoal falava muito pouco. Me parece que São Caetano não foi muito pressionado. Não sei nem se o DOPS esteve realmente em São Caetano. Eu não sei se eles falavam pouco ou nós chegamos porque nós viemos traumatizados por aquele sufoco todo daquele dia terrível lá. Dois dias em que eles permaneceram na cidade, prisão, que depois nós ficamos sabendo e tudo isso. Então nós tínhamos muito receio de falar. Isso que e relatei aqui eu não comentei em São Caetano de modo algum. Os alunos de 8ª, por exemplo, estavam montando uma peça de teatro, Maria Nilde esteve na escola fazendo uma visita, quando apresentaram para ela...

Pergunta:
Em Batatais?

Resposta: 
Em Batatais. Ela falou: "Gente, vocês querem entregar a escola de bandeja?" Porque o tema era Quem Sabe Faz a Hora não Espera Acontecer.

Pergunta:
Nossa!

Resposta:
Mas vinha muito dos alunos. Você vê pelas conclusões, pela atitude deles, em casa brigavam. Quer dizer, você estava formando pessoas com condições de pensar, de criticar e de reagir. Esperava-se que fosse isso. É muito perigoso, extremamente subversivo no sentido de subversão.

Pergunta:
(Inaudível).

Resposta:
É.

Pergunta:
E depois, na sua vida, o que o Vocacional, para você, até hoje, o que te marcou, o que você trouxe daquela época, que fez a diferença na tua vida?

Resposta:
Fez toda diferença. Eu acho que eu terminei a minha formação profissional no Vocacional. Eu aprendi realmente a trabalhar no Vocacional. Agora, quando eu cheguei à rede comum e a minha matéria então não era Economia Doméstica, era Trabalhos Manuais, foi uma quebra muito grande e por muito tempo tudo que eu aprendi, fiz e desenvolvi ficou meio que guardado. Agora... Em que ano foi? Em 94, 93 ou foi antes? 84. Acho que foi em 84. Houve a proposta do projeto noturno em São Caetano. Não. Projeto noturno para a rede do Estado de São Paulo, para São Paulo toda [55']. Em São Caetano a escola que seria piloto do tal projeto era a escola onde eu trabalhava, a Padre Luiz Capra e pretendia-se uma reforma técnico, pedagógica e administrativa. E aí aquela história, tem reunião e o pessoal - "porque o aluno, ninguém quer nada", "blábláblá". Aquela coisa de sempre. Lavação de roupa suja. E não saía e aquilo não se resolvia nada e não aparecia uma proposta e não tinha nada. E eu falei para o diretor, eu falei assim: - É difícil. Se o senhor quiser, na minha casa eu elaboro um projeto porque vir com uma coisa pronta é mais fácil e discute-se em cima daquilo que está pronto. Porque não saía absolutamente nada, virava briga toda noite. Ele falou: "Essa proposta seria muito boa". Primeiro eu falei - Algo pronto para discutir. Eu não disse que eu faria. Ele falou: "Isso é muito interessante professora, mas a proposta pronta é igual àquela história de colocar o guizo no gato. Quem que vai colocar o guizo?" Eu falei: - Não. Pode deixar. Eu faço. Ele olhou. Professora de Artes. Sabe? Ele olhou... Eu falei: - O senhor me dá dois dias. E ele continuava olhando com ar de paisagem assim. Eu falei: - Não professor, se for muito eu venho antes trazer. Como quem diz - está querendo que eu vou querer aproveitar. Na verdade ele achava que eu não ia conseguir. Ninguém sabia de Vocacional, de coisa nenhuma. Aí eu elaborei um projeto muito simples que fosse possível realizar sem a estrutura técnica do Vocacional e levei para ser discutido.

Pergunta:
Com inspiração nele?

Resposta: 
Com inspiração no Vocacional. Sim. Total, completa e absoluta. Não era uma cópia porque não adiantava copiar porque não tinha como realizar. Então eu peguei o que era possível, o que eu achei que seria possível trabalhar. Aí apresentei. Aquilo foi discutido, todo mundo achou lindo, maravilhoso, a supervisora também gostou e, na verdade, foi considerado, ficou entre um dos 5 melhores de São Paulo e o melhor da DRE-6-Sul. Mas baseado no Vocacional. E aí eu comecei. Eu fui escolhida para coordenar e eu comecei a treinar os professores. Então tudo que eu aprendi eu usei no projeto noturno. Nem tudo do Vocacional, não chegamos na ação comunitária, mesmo porque o projeto noturno durou 2 anos, depois virou escola padrão. O que foi possível manter, nós mantivemos. Mas essa experiência a DRE marcou um horário para eu passar para os outros coordenadores e para diretores que se interessassem, houve uma reunião na minha escola para diretores para conhecerem o projeto. Então assim, nós tínhamos assumido um compromisso em uma reunião que foi na calada da noite, lá em Batatais.

Pergunta:
No Vocacional?

Resposta: 
No Vocacional de Batatais, com o DOPS lá a cidade, nós tínhamos nos comprometido. Nós tomamos consciência de que seria impossível continuar o trabalho como era, mas nós nos comprometemos que quando fosse possível, da maneira que fosse possível a gente faria o ideal de o Vocacional ressurgir. Cada um se comprometeu. Então quando veio aquela coisa do projeto noturno para mim eu falei: - Bom, agora eu vou cumprir a minha promessa. E me dediquei para isso muito, muito, muito e muito. Tanto que o resultado foi maravilhoso. Eu acho que uma boa avaliação é avaliação de pai. Um pai que entra à noite na escola vai me procurar e fala assim: "Não tem aula professora?" - Tem. "Eu não estou ouvindo". Eu falei: - Tem sim. Quer subir? Vamos ver. E deve ter classe trabalhando em grupo. [60'] E realmente, tinha aula expositiva em uma sala, trabalho em grupo em outra, tudo quietinho, organizado, discutindo, tantantã. Ele falou: "Não acredito. Essa escola nunca foi assim". - Então está bom. Eu fico assim, acho que a melhor experiência da minha vida foi o Vocacional, da minha vida profissional foi o Vocacional. E foi gratificante, foi um aprendizado em todos os aspectos. E o Capra, quando eu pude retornar, reviver, cumprir a minha palavra de uma maneira muito modesta, é lógico, mas o que eu pude fazer foi feito. Foi muito bom. Foi muito gratificante. No segundo ano do projeto noturno o diretor pediu que fosse expandido para a escola como um todo, o projeto e alguns professores ficaram em dúvida - "Ah, mas nós vamos trabalhar assim, mas será? E tal". Eu falei: - Olha, vamos fazer o seguinte, você pega o seu planejamento bonitinho, você, o de História, tatatá e vão até... Não me lembro se eu pedi que fossem a CENP ou ao FDE. Eu não me recordo agora. Eu sei que foram para tirar algumas dúvidas e quando mostraram o projeto, tal, a pessoa falou: "Nossa! Nós tínhamos a impressão que se o Estado trabalhasse em cima das nossas propostas..." FDE. "...Em cima das nossas propostas, em 10 anos o resultado seria esse que vocês estão mostrando agora". Foi quando eles me trouxeram a resposta e eu falei - Bom, agora eu posso coordenar tranquila porque ninguém vai mais me amolar. (Risos) Questionando. Porque eu resolvia fácil. Está com dúvida? Eu não vou ficar aqui discutindo se eu sou capaz ou não sou capaz. Vai lá e tira a sua dúvida. Aí voltou e - "Não. Beleza. É isso mesmo". - Então está bom. Coisa simples do tipo, um livro obrigatório para a leitura. Não gente. Leva vários. Vários estilos. Deixa o aluno escolher. É que dá mais trabalho para o professor - "Ah, não! Mas como que eu vou trabalhar assim? Mas como que eu vou avaliar isso?" Tem questões abrangentes que você pode fazer e você vai avaliar se o aluno entendeu. Você leu a sinopse e você já sabe que aí o aluno vai querer ler, ele se interessa pela leitura e eles liam muito, no noturno. Então mesmo no Padre Luiz Capra muita coisa mudou.

Pergunta:
Foi a sementinha que foi germinando.

Resposta:
Foi muito bom. O Vocacional foi uma experiência maravilhosa. Eu marquei algumas coisas que eu poderia falar.

Pergunta:
Pode ficar à vontade.

Resposta:
Eu não sei se vocês têm interesse em mais algum detalhe. Eu nem sei o que mais que eu marquei. A questão dos conceitos. Esse é um problema muito sério porque os professores têm uma preocupação muito grande com conteúdo. Isso ficou muito evidente aqui em São Caetano na época do Projeto Noturno. E o aluno pode não estar entendendo nada, ele decora aquilo. Quando decora, quando vai escrever... No noturno a realidade era essa, escreve umas coisas que não têm sentido, muito mal redigidos. Eu falei: Mas é lógico, eles não sabem nem o que eles estão falando. Vocês já ensinaram os adicionas e rararará? Aquela história toda? Tinha professor que vinha irritadíssimo. "Um aluno riscou o universo. Ele não sabe o que é universo?" Talvez não. Talvez não saiba. Então quando você trabalha com conceitos muda tudo. Você pode diminuir a quantidade de conteúdo desde que você mantenha os conceitos e que eles estejam bem formados. Ah, sei lá. Agora o que você quiser perguntar.

Pergunta:
Não tenho mais. Esteja à vontade por que...

Resposta: 
Tem mais alguma coisa que foi dita? Não sei se respondi tudo que você...

Pergunta: 
Para mim respondeu tudo. João tem alguma questão?

Resposta: 
Não.

Pergunta:
Muito obrigada.

Resposta:
Foi um prazer. O material do Vocacional está à disposição das pessoas, sua principalmente.

Pergunta:
Se você se lembrar de alguma coisa interessante e quiser complementar, eu posso ir até você com o gravadorzinho para não ter o trabalho.

Resposta: 
Está certo. Eu agradeço porque é um prazer falar sobre o Vocacional.

 


Acervo Hipermídia de Memórias do ABC - Universidade de São Caetano do Sul